quarta-feira, 20 de junho de 2018

NÓS USAMOS BATOM #EPISÓDIO 4

Naquela manhã ela estava tão confusa quanto o tempo. Arrumava a bolsa, respondia mensagens e da janela se via uma garoa fina e uma ameaça de raios solares. Ela calçou as botas de canos longos, acariciou a cachorra e esqueceu a sombrinha.
Voltou para dar um telefonema e ao se olhar no espelho, viu que tinha esquecido de passar batom. O batom era um item indispensável na sua vida e dizia mentalmente: “amigas, sempre tenham em mãos batom, filtro solar e se puder, lenços umedecidos – a passagem dos anos vai confirmar”.
O batom era tão imprescindível, que monitorava filha e amigas “passou batom?” – era quase um amigo confidente, pois ao mexer seus lábios, o batom acompanhava suas palavras. Gostava da sua boca, mas sabe que já tivera um formato mais atraente antes de ser reconstruída por acidente de percurso.
Escolheu um batom cor de carne. Ficara bem em seus lábios, tinha uma maciez e aderência boas, mas estava levemente quebrado. Olhou-se novamente no espelho, aprovou sua imagem refletida e colocou o batom numa pequena bolsinha de desenhos japoneses, que foi jogada na bolsa maior.
Fez todo o ritual de partida, mas desta vez bem mais apressada. Oi para o porteiro, para vizinha, para outra vizinha, para o senhorzinho que queria puxar conversa e ela falando sobre o tempo já com passos largos. Estava risonha e disse para si mesma “hoje estou aberta a novas possibilidades”.
Iria pegar um ônibus de uma linha que nunca trafegou. Pouco antes de chegar no ponto, encontrou uma mulher que pode ter sua idade, mas os vincos da vida de sem-teto provavelmente apuraram as marcas. Eram conhecidas. Prontamente ela a cumprimentou e recebeu os cumprimentos da moradora de rua, que tinha sua vida guardada em um carrinho de supermercado. Com uma vassoura na mão, repousou a magreza do corpo e se aligeirou em perguntar: “você tem um pedacinho de batom para me dar?”.
Pensou em como daria um pedaço de batom e não se furtou em imediatamente enfiar as mãos na bolsa, na bolsinha e retirar o batom cor de carne. “É seu”. O brilho e contentamento da “amiga de rua” foram a recompensa do dia. “Ah, obrigada, está muito frio e gosto de passar um batonzinho para proteger”, explicou.
Ela riu e sabia que no fundo mesmo, o batom era um código de conduta. Uma postura, uma filosofia de vida. E saiu feliz para seu destino por salvar mais lábios incolores.
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